domingo, 24 de outubro de 2010

Diálogo racional dos objetos

O lápis e o garfo conversavam. Em tempos de eleição até eles falavam de assuntos ligados a sociedade.
- O que seria dos estudantes se não fosse a escola, a educação, e eu(!) por tabela?diz o lápis
- Ninguém aprende de barriga vazia. Se não há comida não tem como, meu querido.
Todo o resto fica em segundo plano. afirma o lápis.
- Então quer dizer que você pensa que um prato de comida é o suficiente? Que os problemas serão resolvidos se fosse tiver o que comer?
- Suficiente sim. Claro que não somente isso. Mas sem isso o que seria?
- E sem educação, o que seria?
- Seria irracional. Sem um futuro digno, se posso dizer assim..
- Como animais. Que vivem, ou melhor, sobrevivem tendo o que comer apenas. Se bem que tem muita gente por aí que..
- Lápis, você é o “alimento” da inteligência. Eu sou o alimento físico.
- Ninguém vive sem a gente, falou o lápis.
- Sem você até vai, agora sem mim..
- Ah não! Novamente essa discussão de importâncias. Você é um cabeça dura!
- Se nem os seres humanos, racionais, entram em acordo como nós, meros objetos criaremos um novo dogma social ‘alimento-educacional - você depende disso!’
- Que acomodado, garfo!
- Você quer discutir infinitamente, é isso? Por que não simplesmente aceita o fato de sermos usados..
- Mesmo que eu quisesse mudar algo, me sacrificar por um bem maior, o apontador não concordaria com minha intenção suicida-salvadora.
- Olhe por outro ângulo. Somos indispensáveis. Como viver sem ter o que comer e sem o mínimo de educação? Poderíamos ser como o cartão de crédito que faz muitos se endividar, ficarem depressivos, compulsivos ou muitas vezes somente ficar esquecido dentro de uma carteira. Somos fundamentais..
- Ou se fossemos como a bebida, que pode causar tanta destruição se não for usada com moderação. Ela pode ajudar as pessoas a esquecer dos problemas por alguns instantes, mas causará algum sintoma negativo depois. Já se alguém me usar em demasia o máximo que pode ter é uma congestão.
Risos (!)
- Gosto do fato de sermos indispensáveis. Pensando assim, até parece mais fácil, diz o lápis. Mesmo não sendo..
- Basta que nos usem. Somos a primeira ferramenta de uma mudança comportamental humana que não podemos começar sozinhos.
- Será?

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Nunca tem ninguém conhecido no ônibus ao lado

Ela pegava o mesmo ônibus todos os dias, no mesmo ponto, não na mesma hora, pois ele se atrasava de vez em quando - o trânsito podia transforma-se no caos a qualquer hora do dia. E, como em todos os outros dias a esperança vinha com o ônibus.
Sempre sonhou com uma vida melhor, um emprego mais bem remunerado, uma reforma na casa, roupas mais bonitas. Mas não era do tipo que reclamava, ao contrário, contentava-se com o que tinha e fazia questão de agradecer a Deus todos os dias.
Estava usando botas bem fechadas, por cima da calça chegando até metade da canela. E também um lenço no pescoço xadrez afim de proteger o pescoço. Qualquer ventinho era suficiente para fazer sua garganta doer. Nos lábios, baton rosa claro, a cor da moda.
Não necessitava de boas vestes e de assessórios para designar o seu trabalho, mas sempre procurava arrumar-se, de uma maneira não muito chamativa. Gostava de uma boa aparência.
165. O ônibus vinha apressadamente cortando o horizonte.
Vai até a beira da calçada e faz sinal com a mão para que o ônibus pare.
Quando ele se aproxima, passa por cima de uma poça d’água, acumulada pela chuva da noite anterior, e a respinga. Nas pernas.
Por sorte não havia barro mas agora sua calça e suas botas estavam molhadas.
Não podia mais sentir o seu cheiro, de banho tomado com sabonete de erva doce, sentia apenas o odor da água da poça. Por menor que fosse o cheiro.
Estava com raiva, e com vergonha. O motorista nem pra pedir desculpas. “Essas coisas só acontecem comigo!” resmungava durante o trajeto. “Maldita poça.”
A luz amarela pisca e o vermelho dominador faz com que os carros, e os ônibus, parem do semáforo.
Ela olha pela janela e vê um ônibus aproximar-se do seu para também parar. “Nunca vejo ninguém conhecido parado no ônibus do lado” pensou com seus botões.
De repente alguém no outro ônibus abana, dá tchau com a mão. Também sorria. Parecia olhar na sua direção, já que o seu ônibus não estava muito cheio e as pessoas dali não pareciam olhar naquela direção.
Olha novamente e vê o abano, incessante. E um sorriso daquele de mostrar todos os dentes. “Será que é pra mim?”
Chega a vez do verde e o ônibus acelera.Ela levanta-se, puxa a cordinha pois era chegada a hora de saltar.
Desce do ônibus sem olhar pros lados. Sem saber o motivo, queria evitar aquele ônibus que estava ao lado.
Caminha alguns passos na rua quando depara-se com um bilhete colado num poste: ‘bom dia, água do dia.”